terça-feira, 20 de abril de 2010

De como curei um garoto - Parte I

Fui convidado, por um jovem amigo meu, para conhecer a noite da cidade. Em minha época, conhecer a noite significava baixar ao nível do submundo, tomar três tragos de traçado e dois de rabo-de-galo. Comer isca de fígado, jiló frito, buchada ao palito e mocotó.

De fato, chegando lá, a coisa não foi bem assim. E eu sabia que não seria. Minha motivação, o que me fez acompanhá-lo, está relacionada a um tratamento que lhe estou ministrando há seis anos, na busca inexorável pela cura dum problema que o assola, saga que aqui os revelarei em uns três ou quatro capítulos.

Dizia eu que esse meu amigo é jovem. Ele é filho de um antigo colega com quem trabalhei numa repartição pública, onde ficávamos a conversar tardes inteiras, apenas bebericando e jogando cartas. Este meu colega foi morar ao lado de Deus, e por isso tive que assistir à viúva após sua passagem. Fiquei uns tempos com ela em sua casa no Guará. Lá, acabei pegando gosto por esse garoto, filho único, para quem me sobrou a incumbência de servir como referência masculina. E assim o fiz por um curto período, no qual fiquei consolando a viúva e sendo viril para ele imitar. Após três dias de uma forte assistência, parti.

Mas eis que uma tarde dessas aquela viuvinha – ah!, que viuvinha! – me telefonou. Desesperada, dizia que o menino havia descambado para um lado estranho. Disse que ele passou a cortar o cabelo à la chanel, usar mochilas coloridas e calças apertadas. Tinha de conversar com ele, ela dizia. Tinha de dar meus consagrados conselhos.

Acatei o pedido. Fui até lá, mandei trazer o menino, que já veio cheio de artimanhas.

“Pô, ti, sá’comé, as cois-mudaru, pô!” – disse o garoto naquele linguajar incompreensível. De início, achei que o pobre estava sofrendo da febre constantinopolitana, mal que assolou milhares de pessoas em minha época e que era mais comum entre os hippies. A principal marca da febre, além acalorar o corpo, era uma molenguice na língua, que fazia com que as pessoas falassem assim, como se as palavras viessem derretidas da boca.

(Para o leitor menos astuto que não pôde compreender a frase, saiba que o significado daquela frase seria algo em torno de “Poxa, meu tio, o senhor sabe como é, as coisas mudaram, cacilda”. Só as pude traduzir porque as registrei num velho gravador de fita que carrego sempre no bolso. Pude ouvir e ouvir, interpretar, anotar e cruzar com alguns livros antigos que tenho por aqui. Livros de lingüística, oratória e astrofísica. Graças a esses livros, além de descobrir o que significavam aquelas palavras, pude constatar que minha primeira e única suposição era correta. O garoto estava mesmo com a febre constantinopolitana, conforme elucidou um livreto. Felizmente, a febre era tratável, desde que à base de extrato de fígado misturado à suor de burro – conquanto, para os hippies, a cura vinha em decorrência de eletro-choques e pauladas no lombo).

Depois daquelas primeiras palavras, retirei-me silencioso e disse à sua mãe que precisava preparar-me para dialogar com ele no dialeto febril-constatinopolitano. Pisquei para ela, segurei suavemente seu queixo, e disse para que não mais se preocupasse. Iria dar um jeito naquilo, “bebê”.

Um ano depois telefonei para ela. O rapaz houvera completado já dezoito. Ofereci meus préstimos, os quais a viuvinha, desesperada como estava, prontamente aceitou. Solicitei que nos marcasse um encontro na chácara da família, em Luziânia. E lá fomos nós.

No início da conversa, estávamos sentados no alpendre, eu na cadeira de balanço, ele no chão com as pernas cruzadas para dentro, quase em posição de lótus. Ambos ficamos em silêncio. Contemplei-o curioso, buscando saber se algo mudara. Levantei-me, pedi licença; ele acenou que a concedia enquanto acendia um cigarro de filtro branco.

Fui dizer à sua mãe, assustada na sala, que ordenasse à empregada que preparasse o extrato. “Você sabe, a cura é um extrato. O que ele tem é uma febre antiga, a ciência não mente. Faça o extrato. O procedimento é simples, meu bem. Pegue um fígado inteiro e o bata no liquidificador. Depois providencie meio litro de suor de burro e uma garrafa de cerveja gelada. Coe o fígado numa peneira, misture-o com o suor de burro e sirva um copo do remédio para o menino e uma caneca de cerveja para mim”.

Voltei para o alpendre e sentei-me novamente. Continuei a encarar o garoto com um sorriso amável, sem dizer uma palavra, pensando no que pôde tê-lo levado àquele estado. Magro, pálido, com o cabelo liso atrapalhando a vista direita. Unhas pintadas de negro e um tênis All Star branco propositadamente maltratado. “Incrível, os três dias consecutivos em minha presença não foram suficientes para referenciá-lo?”, perguntáva-me.

Após meia-hora a empregada veio me trazer uma caneca de cerveja “trincando” (como dizíamos no Godofredo. Havia até quem dissesse "Eita porra, essa veio trincando, hein, bichão") e, num copo colorido com figuras de desenhos animados, serviu o escuro extrato para o rapaz. Com voz fina, ele perguntou “Q’qu’isso?”. Com voz grossa, porém cândida, tratei apenas de dizer “Beba, meu filho...”. O que ele me perguntava, no dialeto febril-constantinopolitano, era de que se tratava o líquido. “Beba, meu filho. É apenas um extrato com resultados empiricamente comprovados”. Ele resistia, olhava com cara de nojo. “E olha, dá um barato!”, arrematei.

Ninguém resiste ao meu charme, de modo que ele sorveu duma só vez todo o meio-litro, enquanto a empregada me olhava faceiramente, girando o dedo indicador direito em minha direção, horizontalmente e próximo aos lábios, como quem quisesse me encontrar e me falar dentro em pouco.
Eu iria me dar bem...

(continua...)

4 comentários:

  1. Admira-me que não o tenha matriculado num colégio militar mais próximo de vossa casa, D. Patrides. Ou tê-lo mandado direto ao Tradicional Celibatário Beneditino do Sacro Império Romano Germânico - ou o que restou dele. Todavia, vejo que o elixir brotado do eqüino e o fígado (de ornitorrinco?) moído lhe trará o juízo em breve. Aguardo o desfecho. (D. Pedro VI - Imperador do Brasil).

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  2. Meu caro Dom Patrides,
    Não obstante respeitar sobremaneira vossos vastos conhecimentos empíricos acerca da medicina empírica à moda antiga e seus sintomas mais conmhecidos, ainda assim, permita-me colcar aqui uma ressalva a vosso vetusto diagnóstico acerca do infante:
    Sendo a febre constantinopolitana caracterizada por sintomas tais como: fala amolecida e efeminações de toda sorte, suponho que este sempre é um diagnóstico possível para estes que atualmente são reconhecidos pela alcunha "emo" - derivado de "emotivo" e que, outrora eram reconhecidos por "góticos" em estranha referência ao estilo característico dos povos dos bons tempos do medievo - os godos - que de efeminados nada tinham! Enfim, na velha Constantinopla, local onde pela primeira vez a tal febre foi descrita e tratada, pelo grande médico dos gréculos - Astrophópolous de Siracusa - era a maledicência conhecida por "febre de Heféstion", em referência ao "eromenos" - ou amante - de Alexandre Magno. Contudo, lembo-me bem que certos rapazolas tratados como sendo acometidos da terrível febre constantinopolitana, ou bizantina, ou ainda Hefestioniana, com esse tradicional ungüento descrito por vossa senhoria, terminaram, pobrezinhos, por desenvolver certas reações terríveis, tais como perda total da capacidade de se relacionar com mulheres, seja pela pura e simples perda da virilidade, seja pelo encolhimento e atrofia do escrotum, seja, nos casos mais graves, pelo completo embucetamento!
    Assim que, talvez seja o caso de considerar como possível causa do mal, também a prisão de ventre.

    No mais, meus sinceros e mui respeitosos comprimentos,
    Dr. Aristópheles de Albuquerque

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  3. Vossa Majestade,

    Dignado por receber tão imperial visita neste humilde espaço que vos é todo devotado, devo concordar com vossa digníssima pessoa e afirmar que, de fato, não seria idéia ruim matricular o pobre mancebo num reformatório cristão, mas sua mãe não passa de pensionista e não conta com posses suficientes para interná-lo em tão estimados estabelecimentos. Quanto mim, sabe bem vossa majestade que já não me valho dos lautos recursos com os quais outro contei...

    Vosso criado,

    D. P.

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  4. Estimado Dr. Aristópheles de Albuquerque,

    Bom é poder contar com os conselhos do sábio amigo, boticário de longa data e cirurgião barbeiro consagrado.

    De fato, conheço bem todas as consequências do tratamento que ministrei ao meu amigo, acometido pela febre constantinopolitana, ou bizantina, ou ainda Hefestioniana (em referência ao "eromenos" - ou amante - de Alexandre Magno). Antes de o fazê-lo pesei as possíveis consequências, e achei que este tratamento seria mais proveitoso, seja para o seu mal, que além de tudo causa uma forte degeneração estética, seja para sua alma, que iria direto para o inferno em consequência da prática diabólica do vício da bestialidade, onde homens fazem papel de mulher.

    Saudações medicinais (hoa hoa hoa, hilário!),

    D. P.

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